Algumas pessoas me perguntam por que eu escalo. Outras, poucas, o que eu mais gosto na escalada. A primeira é difícil de responder, mas a segunda e muito fácil: conquista.
Uma conquista é quando somos os primeiros a subir por uma determinada rota, mesmo que a montanha já tenha sido escalada.
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Putz, que fria. O que que estou fazendo aqui?
Máquina de furar, marreta e talhadeira, grampos, costuras, muitas fitas, corda de escalada, corda de reboque... apoiado apenas numa perna e em duas minúsculas agarras.
Tudo o que quero é sair dali. De preferência pra cima. Chega a ser contraditório: quanto mais subo, mais perto estou do meu objetivo e mais longe da segurança.
"Tá na boa?" Sim, tô numa boa, parceiro. Numa boa enrrascada.
Esse ponto de equilíbrio não estável, como na física, é paralisante. Ao mesmo tempo o corpo começa a dar sinais de desgaste. O ácido lático começa a acumular, os músculos tremem. Borboletas voam no estômago. É nauseante de tão forte.
Que adrenalina que nada. É medo mesmo.
Dobre a perna, tome impulso, dê um bote se jogando para o alto e para a direita e pegue aquela agarra com a mão direita. Apoie o pé direito e coloque a mão esquerda junto com a direita. Faça uma barra e coloque o pé ao lado das mãos. Equilíbrio. Suba o corpo com a perna. Posição confortável para bater mais um grampo. E pronto.
Fácil. Todo o lance, a sequência de movimentos, como no xadrez, está claramente em minha mente. Bote, mão direita, mão esquerda, pé direito. Em minha mente fiz e refiz os movimentos várias vezes. Em minha imaginação dá tudo certo.
Mas a chance de cair é grande. Bem maior do que eu gostaria. Se cair tem que jogar o corpo para direita, escapando daquele bico de pedra.
Bosta!
"Se quiser se joga que eu travo"
Ah, claro, uma alternativa é tentar desescalar, provocar uma queda controlada. Como é tentadora a segurança da corda. Tirando o bico de pedra, seria só o susto da queda.
Um berro e alguns palavrões, seguido de rapel até a base.
Ah, a base. No momento deve ter lá a sombra daquela árvore. E água, muita água. A tranquilidade do mundo horizontal. O problema é olhar para cima, ver o lance não feito, visualizar a linha óbvia da conquista e sentir o gosto amargo e forte da desistência. Aquela vontade de voltar e tentar de novo, mas aí o momento, O momento, terá passado. Depois da desistência nunca sou o mesmo, seria ali um outro Marcello, um que sabe que já não conseguiu, que perdeu o momento. Desistir do prazer da conquista e do cume.
Minha perna treme ainda mais. Estou perdendo a força nos dedos, posso sentir o antebraço endurecendo. Em pouco tempo terei alcançado aquele nível de desgaste do qual não é possível se recuperar. Aí sim, a queda é praticamente certa.
Bote, mão direita, mão esquerda, pé direito.
Sei o que quero fazer.
Bote, mão direita, mão esquerda, pé direito.
Querer. Poder. Dever. Quero subir. Posso subir? Devo subir?
Como seria bom ficar aqui. Pra sempre. Sem ter que enfrentar a dúvida que me atormenta.
Cara, o que me trouxe aqui? Qual decisão tomada na escalada que me fez chegar nessa posição? Sei lá. Na verdade não é uma única decisão que me trouxe aqui. Foram todas, a cada momento e cada movimento.
Cada passada que dei me trouxe aqui.
Bote, mão direita, mão esquerda, pé direito.
Agora está doendo. Meu tendão, já castigado pelo tempo e pelo uso, está no limite.
Quero subir. Posso subir? Devo subir.
Bosta! Não quero cair. Não quero desistir.
"Vai na fé"
Dane-se!
Só há um caminho. Para cima. É isso o que quero. Essa vontade vem da mente e do corpo.
Bote, mão direita, mão esquerda, pé direito.
Bote, mão direita, mão esquerda, pé direito.
Tá virando um mantra.
Dane-se!
"Segura na mão de Deus e vai. Domina o lance ae"
Bote, mão direita, mão esquerda, pé direito.
Bote, mão direita, mão esquerda, pé direito.
Bote, mão direita, mão esquerda, pé direito.
Dane-se!
É agora. Ou perderei a chance de vez.
Quero subir. Dane-se se posso subir ou não. É o que eu quero.
Melhor me arrepender por ter tentado do que por ter desistido.
Consequências? Não me importam mais. Melhor enfrentá-las do que perder o momento. Se é que já não o perdi. Mas não importa mais. Não há mais volta.
Bote, mão direita, mão esquerda, pé direito... Agora!
E em seguida, um longo e silencioso instante.
domingo, 23 de dezembro de 2012
Assim na escalada como na vida
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